No livro Os sentidos do Lulismo (2012), o cientista político André Singer diz que o fenômeno representado pela chegada do metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva ao poder iniciou um período que ele chama de “realinhamento eleitoral, elaborado nos Estados Unidos para designar a mudança de clivagens (divisões) fundamentais do eleitorado”. Segundo o livro, o ano de 2002, com a eleição de Lula, poderia ser “o marco inicial de fase prolongada no Brasil, como aconteceu nos EUA de Franklin Delano Roosevelt (presidente dos Estados Unidos de 1933 a 1945)”.

Ao iniciar o 13° ano no poder, com a presidenta Dilma Rousseff, o lulismo enfrenta seu maior desafio, assim como o PT do ex-presidente e da atual chefe do Executivo brasileiro.

Nesta segunda parte da entrevista concedida por Singer à RBA, ele comenta que um dos principais desafios do PT – num contexto de crise política e pressão da classe dominante – é superar os problemas causados por ter aberto “mão do seu caráter politizador”. Na sua opinião, o partido parou de fazer o trabalho de base, “o único caminho possível para se politizar” a população.

De acordo com conceito do livro (Cia. Das Letras), o ex-secretário de redação da Folha de S. Paulo, ex-secretário de Imprensa do Palácio do Planalto e ex-porta-voz da Presidência da República no primeiro governo Lula entende que, para governar, o partido foi deixando de lado sua “primeira alma”, mais radical, e “começa a predominar aquilo que chamo de segunda alma”.

Além desses fatores, o partido enfrenta ainda as consequências da Operação Lava Jato e um fenômeno claramente decorrente da luta de classes. Para Singer, “o ódio que existe ao PT não é saudável”. “Há certa tendência a alimentar um ódio político que é malsão.” O país entrou em uma fase em que a democracia vai ser testada. Para sair dela, “todo mundo vai ter que fazer a sua parte, inclusive a mídia. Inclusive o jornalismo”, diz.

Muita gente considera que 2005, com o acordo do PT governista e o PMDB de José Sarney, marca uma espécie de fim do que o sr. chama de “primeira alma” do PT, o partido mais radical das origens. O resultado de 2005 é esse que estamos vendo: Eduardo Cunha. Valeu a pena esse acordo pela “governabilidade”?

Esse tema vale a pena a gente olhar com bastante cuidado. Tem muitos elementos a serem separados. A aliança com Sarney é anterior a 2005. Em 2005, o que ocorre é uma tentativa de aliança com o conjunto do PMDB. Tenho dito uma coisa desde 2007 que vou repetir aqui: alianças parlamentares para a manutenção da governabilidade são justificáveis. Porque o governo, qualquer governo, chega ao Executivo e tem que dialogar, ter uma relação produtiva, digamos assim, com o Parlamento. Ele não pode escolher o Parlamento, que é escolhido pela sociedade. É preciso respeitá-lo e negociar com ele. Os pactos parlamentares que dão sustentação a uma ação executiva são justificáveis, desde que a política do Executivo seja justificada. E acho que as políticas do Executivo brasileiro desde 2003 para cá foram políticas sociais importantes. Foi feito um combate efetivo à extrema pobreza, à miséria, houve uma redução da desigualdade.

Se para isso foi necessário se estabelecerem determinadas alianças parlamentares, foi um preço a pagar para se lidar com a realidade. E esse preço que foi pago produziu frutos reais, avanços reais na direção de um programa de maior igualdade, que é um programa de esquerda. Agora, essas alianças não deveriam se transformar em alianças eleitorais. Quando se transforma isso em uma aliança eleitoral, você não se apresenta para o eleitorado com cara própria.

Na verdade, começou a se perder a capacidade pedagógica que as eleições têm que ter, do ponto de vista da esquerda. A esquerda não disputa eleições só para ganhar. É claro que também para ganhar. Mas ela disputa para educar, para politizar a população. Para mostrar que existe um programa alternativo àquele da classe dominante que pode ser implementado, e ganhar apoio para esse programa.

Na medida em que o PT foi estabelecendo um padrão de alianças indiscriminadas, alianças eleitorais, acho que sim, que o PT começa a perder a sua cara própria e começa, justamente, a predominar aquilo que chamo de segunda alma. De 2002 para a frente, mudou. Aqueles que representavam a primeira alma do PT ficaram no partido, mas ela não predomina mais no PT. Eu não quero ser nostálgico, nem romântico, porque na história dos partidos políticos ocorrem mudanças, ocorrem transformações e a gente tem que lidar com a realidade. O que eu digo é que o PT mudou. E este PT transformado é um PT que tem uma série de problemas e também se transformou em um partido muito forte, o partido mais forte do Brasil, mas agora, diante deste escândalo recente, este PT transformado está em face de problemas enormes.

Em Os Sentidos do Lulismo o sr. nota que as pessoas que se beneficiaram das políticas dos governos de Lula e Dilma ascenderam socialmente sem os valores da solidariedade, ou socialistas, mas ascenderam com o individualismo da classe dominante. Como interpreta esse dado?

É exatamente isso. A transformação social que vem ocorrendo, de 2003 para cá, não foi acompanhada de uma ação pedagógica. O PT abriu mão do seu caráter politizador.

Como poderia ser feito isso? Através de comunicação, investimento? Como politizar as massas?

Minha resposta é a resposta tradicional, nesse caso. É o velho trabalho de base, do qual o PT nasceu. O que é o trabalho de base? Você vai até uma determinada comunidade, normalmente tem um, dois militantes naquela comunidade. O que se vai fazer, se quiser fazer um trabalho de base? Vai falar com os seus vizinhos, com seus companheiros de trabalho, ou de lazer, e vai começar a transmitir para eles uma visão do que está acontecendo, e do que pode vir a acontecer. Então, ele vai chamar uma primeira reunião, no bairro. Vai chamar cem pessoas e virão dez, cinco. É assim que começa. O que é o trabalho de base? É quando se persiste, persiste, persiste... até que aquilo se transforma em um núcleo de base, sobre o qual se tem um conjunto de pessoas, enraizadas naquela comunidade, que tem um pensamento capaz de dar uma direção para o conjunto da comunidade.

É isso que é o trabalho de base. É esse trabalho que, a meu ver, parou de ser feito. É o único caminho possível para se politizar. Se você tenta politizar por meio de uma comunicação que vem de cima para baixo não cria raízes.

A questão da velha polarização PT x PSDB teria chegado a um limite, estaria no fim, frente a essa radicalização, a aliança dos tucanos com a extrema direita na eleição, por exemplo?

Acho que não. Diria até o contrário. A polarização está mais viva do que nunca. Os partidos, no Brasil, por caminhos estranhos acabaram por se converter em veículos da luta de classes, tal como ela se dá na formação social brasileira. Nesse sentido, o PT e o PSDB são muito expressivos. Acredito que essa polarização está tendendo a ficar mais acesa e expressar mais essa divisão, que existe na sociedade, entre ricos e pobres. Não é uma divisão artificial, como dizem alguns, nem criada pelo PT. É uma divisão real e que, de certa maneira, foi ativada pelas políticas de promoção social que o PT liderou, no governo federal, às quais a classe média tradicional reagiu com intenso conservadorismo. O que é mais difícil de entender, na trajetória dos partidos brasileiros, é o papel do PMDB, porque não tem uma base social tão nítida.

Mas esses últimos acontecimentos estão colocando o PT, com as suas características atuais – não estou falando do velho PT, estou falando do PT de hoje – diante de desafios muito difíceis.

Não lhe parece que o ex-presidente Lula perdeu a oportunidade, após a eleição de 2006, de fazer reformas estruturais, como a tributária, a política e o marco regulatório das comunicações, já que tinha sido eleito com um respaldo popular enorme?

Um indicador das dificuldades para isso foi a derrota da CPMF, no final de 2007. A eleição foi em 2006, e a CPMF foi derrubada em setembro de 2007. Diria que aponta no sentido contrário. Ou seja, a situação no Parlamento sempre foi difícil. Na realidade, o lulismo não conseguiu compor uma situação mais progressista no Parlamento. É verdade, também, que com essa decisão do PT de fazer alianças indiscriminadas ficava difícil aumentar, ainda que paulatinamente, a força de uma bancada nitidamente progressista. Nós tivemos uma espécie de descompasso entre o Executivo, que conseguiu, até 2012, levar adiante políticas que chamo de reformismo fraco, mas de reformismo, com um Parlamento que não obstaculizava, mas também não facilitava nada. Tenho dúvidas se haveria essas possibilidades que você mencionou.

A minha expectativa era de que pudesse haver, gradativamente, um aumento e uma correlação de forças mais favoráveis às reformas, na medida em que o combate à pobreza fosse mostrando seus resultados. Sobreveio essa situação econômica difícil, a partir do final de 2012, em que a burguesia se colocou, por inteiro, contra.

Há quem fale até em um locaute de investimentos, de natureza política – não sei se é verdade, mas é uma hipótese – e aí o governo Dilma, de certa forma, começou a desandar. Tivemos junho de 2013, que já foi um sinal desta nova situação difícil e, a partir de março de 2014, a Operação Lava Jato, e, simultaneamente, a estagnação econômica, levando a essa conjuntura sobre a qual já falamos. Uma eleição muito apertada, em que a presidente disputa com um discurso mais à esquerda e, na sequência, menos de 24 horas depois da eleição, começa a fazer o contrário do que tinha afirmado.

Sobre o conceito do “realinhamento”, uma nova configuração eleitoral que, no Brasil, teria se iniciado em 2002 com a eleição de Lula, e teria potencial para ter longa duração, o sr. continua com essa previsão?

Estamos caminhando para 16 anos de lulismo. Não é um tempo pequeno, é um tempo grande. Agora, acho que realmente o lulismo está enfrentando seu maior desafio, de uma dimensão mais séria do que no passado. Em várias oportunidades, tive polêmicas com outros colegas que diziam: “o lulismo se esgotou”, “as condições do lulismo se esgotaram”. Isso é uma discussão recorrente, e eu sempre disse: “não é verdade. Existem alternativas, tem margem de manobra. O governo está utilizando essa margem de manobra”. E, de fato, isso foi sendo verificado, até agora. Mas acho que agora estamos vivendo a primeira crise real do lulismo, a primeira crise de verdade.

A resposta à tua pergunta é: não quer dizer que acabou, mas vai depender de como essa crise vai se resolver. No Brasil, fala-se muito em crise, o tempo todo, mas agora estamos em crise. Antes, não estávamos. Na crise, não é possível afirmar como ela vai se resolver e, portanto, se essa experiência que eu chamo de lulismo terá continuidade. Tem chance de ter. O problema é, justamente, a resolução da crise.

Como se pode olhar para 2018 com Lula no cenário? Como vê essa possibilidade eleitoral?

Vejo dois vetores, de imediato. Um, é como dar conta da situação econômica. Penso que o governo deveria rever a decisão que tomou. Reencaminhar a retomada do crescimento, de maneira moderada, como vinha fazendo. Um dos elementos de que depende a resposta é: como vai se desenvolver a economia, daqui até 2018. Se as condições econômicas estiverem melhores, o cenário para a eleição de Lula é mais favorável.

Segundo, como o PT vai enfrentar a questão da Operação Lava Jato. Ou seja, é um escândalo de maiores proporções, e que vem na sequência de um episódio também muito 'publicizado' e muito espetacular, que foi o julgamento do mensalão. Uma coisa sobreposta à outra cria a necessidade de o PT reavaliar como ele vai se posicionar perante a sociedade brasileira. Precisa dar uma resposta efetiva a essa avalanche de denúncias que estão ocorrendo. Esse é um fator que, agora, começa a ter um peso, que não tinha antes, na equação do próprio lulismo. Diria que depende disso e, na atual situação, com um governo fragilizado, com dificuldade na sua base parlamentar, tendo que gerir uma situação econômica difícil e um escândalo de grandes proporções, é preciso ver como o governo vai conseguir desatar esses vários nós. Evidentemente, o movimento social vai ter o seu peso, e está dando sinais de que está ativo, vivo, como ficou claro na sexta-feira (13), de que jogará o seu papel.

Tudo isso para não falar da oposição, das classes médias. De todo esse conjunto é que vai sair um cenário para 2018 que, neste momento, seria uma loucura tentar prever. Em uma situação de crise, é preciso acompanhar a conjuntura diariamente.

Qual sua opinião sobre o papel desempenhado hoje pelos meios de comunicação – que parecem condenar todos a priori – no atual processo?

Essa questão é muito complexa. A primeira coisa a ser dita é que qualquer posição precisa partir da seguinte premissa: a democracia depende, também, de uma mídia completamente livre. Há um papel fiscalizador da mídia, apesar de todos os defeitos que ela possa ter, que é imprescindível. Tem que existir, e a democracia tem que ser forte o suficiente para enfrentar as denúncias, quando elas têm fundamento.

Por outro lado, existe a questão de que a grande mídia tem uma tendência ideológica legítima, porém real, para posições mais conservadoras. Essa tendência tem que ser respeitada, mas, ao mesmo tempo, tem que ser notada. No debate político da democracia, da sociedade, é preciso e importante que haja certo equilíbrio nas posições, que se contrapõem.

É preciso que o jornalismo perceba que pode causar um dano importante, se ele dissolver instituições das quais a democracia brasileira necessita. Aqui, coloco, por exemplo, o PT. O PT não é só um partido que tem uma função para quem é de esquerda. O PT tem uma função para a democracia brasileira. Ele é uma das grandes instituições da democracia brasileira. Por isso é preciso, de um lado, que o PT realize um processo interno que dê conta dessa situação, de tal maneira que possa sair dessa situação, enquanto uma instituição sólida, da qual, volto a dizer, a democracia brasileira precisa, assim como precisa do PSDB. Não há interesse em dissolver nem o PT, nem o PSDB e, diria, nem o PMDB, que são os três maiores partidos da democracia brasileira. É importante que o jornalismo se dê conta de que é preciso separa o joio do trigo.

Dou outro exemplo. Esse ódio que existe contra o PT não é saudável. Não vejo, do lado dos que estão no campo do PT, um ódio equivalente ao PSDB, nem nunca vi. Havia, e há, divergências. Se o PSDB voltar ao governo, suponho que o PT vai fazer uma oposição dura, como o PSDB faz. Isso é da natureza da democracia. Uma coisa é oposição dura, outra é você querer eliminar o adversário do campo. São duas coisas diferentes. Vejo que, às vezes, há certa tendência a alimentar um ódio político que é malsão, que não é saudável para a democracia brasileira.

Por parte da mídia?

Na mídia. Eu não diria que toda a mídia está comprometida com isso, não é o caso. Mas, diria, vejo expressões na mídia de uma vontade de fomentar um ódio, que não ajuda. E, diria, neste momento, em que enfrentamos uma situação de crise, é preciso olhar para isso com muito cuidado, porque entramos em uma fase que a democracia vai ser testada. Eu acredito, por vários motivos, que nós vamos sair de pé do teste. Mas não vai ser automaticamente. Todo mundo vai ter que fazer a sua parte, inclusive a mídia. Inclusive o jornalismo.

 

 

 

FONTE: Rede Brasil Atual, 20 de março de 2015