Por Liane Thedim, Valor — Rio
“Eu, uma pobre coitada, cinco filhos, sem marido, fiz o trabalho do país todo.” É como dona Pureza Lopes Loyola resume sua jornada, que começou há exatamente 30 anos ao sair sozinha de Bacabal, cidade maranhense de 100 mil habitantes a 240 quilômetros de São Luís, em busca do filho, aliciado para trabalhar em condições análogas à escravidão no interior do Pará. Enfrentou onça, jagunço, fome, frio, sol e medo até que sua luta ganhou projeção nacional e abriu caminho para a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), até hoje um dos principais instrumentos da política pública de combate a esse crime. Muito se pensava ter avançado desde então, mas a grave piora nos indicadores em 2023 deu o alarme: 2.592 vítimas foram libertadas até 3 de outubro, um recorde para o período nos últimos dez anos, segundo o Ministério do Trabalho. Além disso, em outubro, a “lista suja” de empregadores envolvidos no crime teve a maior atualização da história, com 204 nomes adicionados, somando um total de 473 pessoas físicas e jurídicas.
“Aumentou porque os poderosos são muitos. Então, levam o filho do Pedro, da Pureza, da Maria e vão botando escravizados para trabalhar, produzindo muito porque não pagam dinheiro, pagam na bala”, diz dona Pureza, com seu jeito simples, em entrevista ao Valor por chamada de vídeo.
Segundo especialistas, entre as causas para a deterioração recente estão o crescimento da pobreza, agravado pela pandemia; o avanço da terceirização, facilitada pela reforma trabalhista; o baixo índice de punição criminal de envolvidos; e até mesmo a retomada firme das fiscalizações, em um ambiente político mais favorável a partir deste ano, com o novo governo. “A crise socioeconômica aumentou a vulnerabilidade, e as pessoas ficaram mais expostas a entrar em situações como essa. A reincidência é muito grande porque, uma vez libertado, o trabalhador não tem opções e volta a cair em armadilhas. O resgate é só a ponta do iceberg”, afirma Vinicius Pinheiro, diretor do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para o Brasil.
O país voltou ao mapa da fome da ONU em 2018, e desde então a situação só piorou. Relatório de julho deste ano do organismo mostra que 21,1 milhões estavam em situação de insegurança alimentar grave em 2022, o que corresponde a 9,9% da população. Entraram para a estatística, desde o último levantamento (2019-2021), 5,7 milhões de brasileiros.
“Caminhamos muito na repressão, agora precisamos avançar na prevenção e no pós-resgate”, diz Marina Ferro, diretora-executiva do InPACTO, ONG que atua com as empresas para promover o trabalho decente nas cadeias produtivas. O assunto também ganhou visibilidade no fim de setembro, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, assinaram um compromisso mútuo para combater a precarização do trabalho, tendo os sindicatos como base de apoio.
Na prevenção, os especialistas são unânimes ao apontar a importância de tornar obrigatória a chamada “devida diligência”, atualmente prevista em um decreto de 2018 mas de adesão voluntária. A regra já é uma realidade em diversas nações, como França e Alemanha, e está em vias de valer para toda a União Europeia — a diretriz aprovada pelo Parlamento Europeu está em sua última fase de negociação, o que vai afetar diretamente a compra de produtos do Brasil.
A prática exige que corporações identifiquem, previnam, mitiguem e respondam por danos que causem ou para os quais contribuam em toda a cadeia produtiva na qual se inserem. Trocando em miúdos: a vinícola do Sul, por exemplo, passa a ser obrigada a verificar em todas as etapas, desde a plantação da uva até a fábrica da rolha da garrafa, se há alguma violação a direitos humanos ou meio ambiente.
“As empresas no Brasil, principalmente a cadeia do agronegócio, estão sentindo na pele e começando a reagir, mas é importante que o Brasil tenha seu próprio marco regulatório. Há uma corrida, uma série de organizações trabalhando nesse sentido”, diz Ferro. “Quando as empresas resolvem fazer esses sistemas de controle são muito eficientes.”
Pinheiro, da OIT, conta que percebeu uma quantidade maior de CEOs comprometidos com o tema. “Eles estão cientes do risco para suas corporações. Não tem como se esquivar ao ter a cadeia toda responsabilizada.”
Renato Bignami, auditor-fiscal do trabalho e diretor do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), diz que a devida diligência obrigatória ganha mais importância diante da precarização da estrutura de fiscalização atual.
De acordo com ele, há 1.940 auditores em atividade, para um mercado de 110 milhões de trabalhadores, menor patamar histórico. O número ideal, afirma, seria entre 6 mil e 7 mil fiscais, mas o problema seria amenizado se ao menos as 1.700 vagas abertas, de servidores aposentados, fossem preenchidas. O governo já autorizou concurso para 900. “Por isso, a gente vem buscando chamar a atenção para a importância das cadeias produtivas no desafio de combate ao trabalho escravo”, comenta Bignami.
Já a melhoria do pós-resgate é um dos focos da revisão do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, cujo processo começou agora em agosto com uma primeira reunião com OIT, ministérios ligados ao tema, entidades empresariais, como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), e representantes da sociedade civil. O primeiro plano foi lançado há 20 anos e revisto cinco anos depois. Desde então, 15 anos, portanto, permanece igual.
“São três eixos de atuação: prevenção, repressão e reinserção. E a reinserção é o ponto principal nessa revisão do plano, porque é uma fragilidade do atual. É o que vai quebrar o ciclo de revitimização”, explica Andréia Minduca, coordenadora de Apoio à Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, a Conatrae, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania que articula a coordenação de todas as entidades que atuam no combate.
Segundo ela, o caso do resgate de cerca de 200 trabalhadores em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, em fevereiro, foi um divisor de águas. Os funcionários eram terceirizados e mantidos em situações degradantes, sob ameaça e violência. As vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton tiveram que assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), em que se comprometeram a pagar R$ 7 milhões de indenização por danos morais individuais e coletivos. “Principalmente no Sul o número de denúncias explodiu. Em 2018 e 2019, tivemos dois casos de resgate no Rio Grande do Sul. Neste ano, já temos 304. Toda a sociedade se mobilizou. Quase dez instituições procuraram a Conatrae para serem observadoras.”
Minduca aponta que também o Legislativo se engajou e foram apresentados vários projetos de lei para, por exemplo, regulamentar a expropriação de terras em locais onde se encontra trabalho escravo. A coordenadora do Conatrae ressalta ainda o aumento nas denúncias de trabalho escravo doméstico, impulsionado pela legislação do setor, de 2015. “As situações não eram diferentes antes da lei, mas eram normalizadas. Em 2017 começam a aparecer casos e de lá pra cá só aumentam.”
No Ministério Público do Trabalho (MPT), o número de denúncias recebidas subiu de 2.098 em 2022 para 2.502 neste ano (nos dois casos, até agosto). Nos setores com mais resgates neste ano, a cana de açúcar vem em primeiro lugar (361); seguida de apoio à agricultura (268); cultivo de lavouras (261); produção florestal (245) e café (152). O procurador-geral José de Lima Ramos Pereira diz que vem buscando apoio dos governadores para incrementar as políticas públicas de prevenção, por meio das comissões estaduais de combate ao trabalho escravo. Por enquanto, apenas dois, do Rio Grande do Sul e da Bahia, já aderiram. “O que mais impressiona é a indiferença do empregador que usa o trabalho escravo. Ele quer lucrar, não interessa como”, conclui.
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