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Vocês se lembram da expressão “passar a boiada”? Pois é, aqui vamos nós de novo… Nunca pensei que teria que abordar esse tema com tanta frequência, mas não temos como escapar. Agora, trata-se literalmente de fazer a boiada passar por áreas de preservação permanente. Eu explico…

No último dia 14 de agosto, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados aprovou uma alteração no Código Florestal (Lei 12.651/2012). Essa mudança refere-se ao Projeto de Lei 2168/2021, de autoria do deputado  Jose Mario Schreiner (DEM-GO), que busca classificar como de utilidade pública as obras de infraestrutura para irrigação e dessedentação animal (acesso de rebanhos à água) em Áreas de Preservação Permanente (APPs) [1], incluindo a construção de barragens ou o represamento de cursos d’água.

O projeto foi aprovado com larga maioria: 37 votos a favor e 13 contrários. Apenas o Partido Verde (PV), o Partido dos Trabalhadores (PT), o Avante e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) votaram contra. Vale ressaltar que a proposta já havia passado pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) e pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) da Câmara.

 

A maior parte das APPs está localizada em topos de morros, margens de rios e áreas estratégicas para a preservação de ecossistemas e biodiversidade. Intervenções nessas áreas só são permitidas em casos de utilidade pública, interesse social ou quando têm impacto ambiental mínimo. Nesse sentido, a autorização de obras de irrigação e dessedentação animal pode levar à perda de solo fértil, ao assoreamento e à redução do fluxo/vazão dos rios, intensificando a crise hídrica. Além disso, subjacente a essas obras está o desmatamento de vegetação nativa, normalmente presente nas APPs.

 

Curiosamente, no Rio Grande do Sul, em abril de 2024, o governador Eduardo Leite sancionou um projeto de lei aprovado em 2023 pela Assembleia Legislativa que trata do mesmo tema: alterando o Código Estadual do Meio Ambiente para permitir intervenções em APPs com fins de irrigação.

A pressão do setor agropecuário tem avançado pelos diferentes níveis legislativos, focada em soluções de curtíssimo prazo, sem considerar os impactos devastadores que uma futura crise hídrica e a perda de biodiversidade podem causar ao próprio processo produtivo.

 

A aprovação desse tipo de projetos enfraquece gradativamente os códigos florestais estaduais e nacionais, flexibilizando leis que possuem razões claras para existir e que não podem ser derrubadas de forma isolada. Isso abre precedentes para que novos projetos de flexibilização sejam apresentados e votados consecutivamente, como o Projeto de Lei 3334/2023, que já tramita no Senado e propõe a redução da Reserva Legal em áreas da Amazônia Legal.

Em vez de propor mudanças que ameaçam a preservação ambiental, o Legislativo deveria discutir as limitações na plena implementação do “novo” Código Florestal, que já completou 12 anos. Deveriam, por exemplo, reforçar eventos como o recente promovido pela Comissão Mista sobre Mudanças Climáticas, que debateu os desafios e dificuldades na aplicação do Código.

O meu argumento aqui, entretanto, não é ingênuo. Reconheço que enquanto o Brasil priorizar excessivamente o seu papel de exportador de commodities e incentivar a produção agropecuária, esses “conflitos” entre desenvolvimento econômico e sustentabilidade ambiental continuarão existindo. Por outro lado, uma mudança do nosso drive exportador para a produção industrial não nos livraria completamente de tais armadilhas; na verdade, poderia introduzir novos desafios, como a demanda crescente por energia. Como já mencionei em textos anteriores, é necessário repensar o processo de desenvolvimento dos países do sul global para que a preservação ambiental não seja apenas um objetivo paralelo e sim um foco central, que possa gerar crescimento econômico e promover um desenvolvimento realmente sustentável.

Pragmaticamente, nesse momento, é importante que os parlamentares e partidos que se opõem a esse projeto apresentem recurso contra a decisão terminativa das Comissões, para que a proposta seja votada em plenário na Câmara antes de seguir ao Senado Federal. O tema precisa ser amplamente debatido, e as consequências negativas do projeto precisam ser reiteradas e esclarecidas ao público. Só assim poderemos evitar sermos atropelados por essa boiada que, outra vez, nos empurra para mais perto do fim do nosso tempo neste planeta.

[1] Area de Preservação Permanente, de acordo com o Código Florestal (Art.3, II), diz respeito a uma área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.

 

 

Autoria

Coletivo Legis-Ativo

Coletivo Legis-Ativo Projeto do Movimento Voto Consciente que reúne voluntariamente 20 cientistas políticos, em paridade absoluta de gênero espalhados por todas as regiões do país. As ações do coletivo envolvem a produção de textos analíticos e a apresentação, em parceria com organizações diversas, de podcasts.

legis.ativo.mvc@gmail.com

Carolina CorrĂȘa

Carolina Corrêa Doutora em Sociologia pela Universidade do Porto, mestre em Ciência Política pela UFRGS e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Realizou Estágio Pós-Doutoral no PPG Ciência Política, da UFRGS (PNPD/CAPES – de 2017 a 2022). Atualmente, é research advisor na MarketShare Associates.

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