Reflexões Trabalhistas
O surgimento das redes sociais revolucionou o mundo e a maneira como as pessoas interagem e se comunicam, já que permitiu que as informações sejam partilhadas em tempo real.
De acordo com o site global de estatísticas digitais DataReportal [1], no início de 2024 o Brasil já apresentava cerca de 187.9 milhões de brasileiros conectados à internet, um crescimento de 3.3% (6.1 milhões) em relação ao início do ano anterior. Desse total, 144 milhões de pessoas são usuárias de redes sociais, o que representa 63% da população total do país.
O amplo crescimento do mundo virtual, no entanto, trouxe consigo problemas inéditos, que em virtude da sua atualidade ainda não possuem uma solução clara e definitiva.
A expressão “internet é terra sem lei” está cada vez mais difundida nas redes, e apesar de já existirem entendimentos jurisprudenciais e leis que regulam diversos aspectos do seu uso, como é o caso da LEI nº 12.965/2014, que “estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil” [2], o tema ainda apresenta dificuldades latentes em diversos campos da área jurídica.
No plano trabalhista, observa-se claramente essa questão ao tratarmos da nova onda de rescisões por justa causa em virtude de posts e comentários em redes sociais.
De um lado da controvérsia, está o trabalhador que posta uma brincadeira, ou um comentário ofensivo relacionado ao seu trabalho, e do outro, as empresas que afirmam que tais comportamentos ferem sua imagem profissional.
Inicialmente, é importante lembrar que a justa causa configura é a sanção máxima aplicável ao empregado que resulta no rompimento do vínculo empregatício sem o pagamento de qualquer indenização. Neste caso, o empregado só tem o direito de receber os saldo de salário (últimos dias trabalhados) e as férias vencidas, se houver.
Spacca
As hipóteses de dispensa motivada estão dispostas em lei de forma taxativa, especialmente previstas no artigo 482 da CLT. Destaca-se a alínea “k”, quase sempre presente nos processos que englobam as rescisões por justa causa em decorrência do mau uso das redes sociais e internet:
“Art. 482 – Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:
…
k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;”
Neste sentido, cumpre salientar que a conclusão predominante dos tribunais do trabalho pende à aceitação de que essas faltas, mesmo quando praticadas fora do ambiente ou horário de trabalho, podem ensejar a dispensa por justa causa.
Ao tratarmos do tema, uma das questões mais debatidas é o direito à liberdade de expressão do trabalhador em contraposição à imagem pública da empresa.
Por mais que a liberdade de expressão seja uma das liberdades fundamentais, é imprescindível saber que, como todos os princípios constitucionais, a sua inviolabilidade não é absoluta, podendo o direito ser relativizado em propósito de proteger outro direito de mesma importância. Neste sentido, o tema de repercussão geral nº 837 do STF:
“Tema 837 – Definição dos limites da liberdade de expressão em contraposição a outros direitos de igual hierarquia jurídica – como os da inviolabilidade da honra e da imagem – e estabelecimento de parâmetros para identificar hipóteses em que a publicação deve ser proibida e/ou o declarante condenado ao pagamento de danos morais, ou ainda a outras consequências jurídicas.”
Logo, a depender da publicação feita em redes sociais, o dano causado à honra da empresa pode mitigar o direito à liberdade de expressão, resultando na dispensa do trabalhador por justa causa. Essa foi a conclusão da 6ª Turma do TRT da 3ª Região (MG), ao entender em favor da rescisão por justa causa da funcionária que difamou a empresa no LinkedIn a partir de posts e mensagens a outros internautas.
De acordo com a decisão, ficou evidenciada a intenção dolosa da autora de difamar publicamente a empresa. Uma vez provada a falta praticada, manteve-se a justa causa. A sentença, endossada pelo relator, discorreu sobre a responsabilidade por condutas praticadas nas redes sociais: “O meio digital, há algumas décadas, vem permitindo sua utilização, muitas das vezes, de maneira irresponsável, para extrapolar os limites das reivindicações que são reconhecidas quando da utilização devida dos meios legais cabíveis, violando e afrontando os direitos de imagem e de privacidade que são esteios da República. Esse juízo vem percebendo ao longo das duas últimas décadas a sucessão de casos envolvendo aplicação de justas causas em circunstâncias idênticas, o que demonstra, inclusive, a necessidade de regulamentação das mídias e de responsabilização de seus usuários, sempre que se denote um abuso nas informações, respostas e manifestações que extrapolam o ordinário. A popularização do acesso às mídias vem estabelecendo um número crescente de ‘comentaristas de opinião’ cujos atos, violam direitos comezinhos constitucionalmente tutelados, não estando isentos de responsabilidade” [3].
O entendimento também prevaleceu no processo nº 1000716-83.2019.5.02.0027, julgado pelo TRT da 2ª Região (SP), que declarou a importância positiva das redes sociais para as empresas e reforçou a dispensa por justa causa do trabalhador que publicou comentários ofensivos no Facebook com o objetivo de lesar a reputação da empregadora [4].
“DISPENSA POR JUSTA CAUSA – FALTA GRAVE – MENSAGEM POSTADA EM REDE SOCIAL (FACEBOOK) – CONFIGURAÇÃO – A importância positiva das redes sociais para as empresas, se define pelo ‘marketing de conteúdo’, que consiste no gerenciamento de estratégias para melhorar o reconhecimento e/ou identidade visual de um produto ou serviço, expondo tópico relevante, além de servir como um canal de atendimento, tanto para conquistar clientes, como um público-alvo. Portanto, é óbvio, que se uma empresa recebe um comentário negativo, esse pode ser visualizado pelos seus concorrentes e utilizado de forma prejudicial para a organização que o recebeu. E tal circunstância é agravada quando tal atitude parte de um funcionário. Afinal, embora as redes sociais funcionem no ambiente da Internet, não deixam de impactar profundamente ‘na existência das pessoas’ (físicas ou jurídicas), até porque, hoje, é difícil dissociar o ‘digital’ do ‘real’, porquanto muitas notícias saem primeiro na “web”, para após ser replicada em outras fontes de informações (jornais, revistas, etc.).”
O assunto passa a complicar, no entanto, quando as postagens não objetivam prejudicar a empresa. Um meme ou brincadeira compartilhada pelo empregador em rede social pode muito bem chegar ao conhecimento do empregador e, caso o seu post acabe sendo atrelado ao local que trabalha, há o perigo da rescisão por justa causa, como o caso do Processo n° 0000119-90.2022.5.12.0046 [5], julgado pelo TRT da 12ª Região (SC).
Por fim, resta evidenciada a complexidade do tema, que não possui uma conclusão definitiva e se encontra em constante debate.
O novo mundo digital carece de limitações bem estabelecidas, e, em virtude disso, resta óbvio que seu impacto no mundo real resultará em diversos conflitos, inclusive na esfera trabalhista. Em razão disso, é de suma importância que o trabalhador seja comedido e evite críticas públicas ao empregador.
4. EMENTA: DISPENSA POR JUSTA CAUSA – FALTA GRAVE – MENSAGEM POSTADA EM REDE SOCIAL (FACEBOOK) – CONFIGURAÇÃO – A importância positiva das redes sociais para as empresas, se define pelo “marketing de conteúdo”, que consiste no gerenciamento de estratégias para melhorar o reconhecimento e/ou identidade visual de um produto ou serviço, expondo tópico relevante, além de servir como um canal de atendimento, tanto para conquistar clientes, como um público-alvo. Portanto, é óbvio, que se uma empresa recebe um comentário negativo, esse pode ser visualizado pelos seus concorrentes e utilizado de forma prejudicial para a organização que o recebeu. E tal circunstância é agravada quando tal atitude parte de um funcionário. Afinal, embora as redes sociais funcionem no ambiente da Internet, não deixam de impactar profundamente “na existência das pessoas” (físicas ou jurídicas), até porque, hoje, é difícil dissociar o “digital” do “real”, porquanto muitas notícias saem primeiro na “web”, para após ser replicada em outras fontes de informações (jornais, revistas, etc. .). Desta maneira, no caso corrente, não há como negar que o reclamante, com o seu comentário ofensivo, além do uso de palavras de baixo calão e o expresso desejo de obter a própria demissão, aviltou a reputação de sua empregadora, como dos seus colegas de trabalho, na maior e mais representativa rede social do mundo na atualidade (Facebook), dando ensejo à justa causa para a ruptura do liame empregatício pelo empregador, na forma do artigo 482, alínea j (“ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa…”). Apelo do reclamante a que se nega provimento.
(TRT-2 – ROT: 10007168320195020027, Relator: NELSON BUENO DO PRADO, 16ª Turma)
5. PUBLICAÇÃO EM REDE SOCIAL DO EMPREGADO. COMPARTILHAMENTO DE “MEME”. ATO LESIVO À HONRA E BOA FAMA DO EMPREGADOR. DISPENSA POR JUSTA CAUSA. VALIDADE. As publicações realizadas nas redes sociais do trabalhador, atribuindo conduta desabonadora ao empregador, mesmo que através do compartilhamento de “memes”, ofende a sua honra e boa fama, autorizando a rescisão do contrato de trabalho por justa causa, com fundamento no art. 482, k, da CLT. <p style=”; display: inline;; display: inline;” (TRT-12 – ROT: 00001199020225120046, Relator: CESAR LUIZ PASOLD JUNIOR, 3ª Câmara)
[1] https://datareportal.com/reports/digital-2024-brazil
[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
[3] https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-juridicas/justica-mantem-justa-causa-de-trabalhadora-que-difamou-empregadora-na-rede-social-linkedin#:~:text=Justi%C3%A7a%20mant%C3%A9m%20justa%20causa%20de%20trabalhadora%20que%20difamou%20empregadora%20na%20rede%20social%20LinkedIn,-publicado%3A%2022%2F07&text=A%20Sexta%20Turma%20do%20TRT,manchar%20a%20imagem%20da%20empresa
[4] TRT-2 – ROT: 10007168320195020027, relator: NELSON BUENO DO PRADO, 16ª Turma
[5] TRT-12 – ROT: 00001199020225120046, relator: CESAR LUIZ PASOLD JUNIOR, 3ª Câmara
é advogada, professora da PUC na graduação e pós-graduação e sócia do escritório Abud e Marques Sociedade de Advogadas.
CONJUR
https://www.conjur.com.br/2024-set-13/dispensa-por-justa-causa-e-o-mundo-digital/