Reflexões Trabalhistas

Na última segunda-feira (30/9), o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou, por unanimidade, o Ato Normativo 0005870-16.2024.2.00.0000 (Resolução nº 586) [1], que prevê a realização de acordo entre empregado e empregador na rescisão do contrato de trabalho, mediante homologação na Justiça do Trabalho, com a quitação total do contrato, ficando vedada a apresentação de futura reclamação trabalhista para discutir os termos do acordo e do próprio contrato de trabalho.

Dentre os “considerandos” apresentados na resolução estão a necessidade de diminuir o volume de litigiosidade na Justiça do Trabalho; a existência de métodos consensuais para a solução das disputas; e, a previsão contida nos artigos 855-B a 855-E da CLT, que trata do processo de jurisdição voluntária para a homologação de acordos extrajudiciais.

De fato, segundo o relatório da Justiça em Números do CNJ, a quantidade de processos pendentes na Justiça do Trabalho teve uma queda nos anos de 2018 e 2019 (logo após a malfadada Lei nº 13.467/2017 — conhecida como reforma trabalhista), voltando a subir nos anos seguintes, 2020 a 2023, quando alcançou o mesmo patamar de 2017.

Sobre o tema, o ministro Luis Roberto Barroso sustentou que a excessiva litigiosidade “torna incerto o custo da relação de trabalho antes do seu término, o que é prejudicial a investimentos que podem gerar mais postos formais de trabalho e vínculos de trabalho de maior qualidade” [2].

Mas será que a possibilidade de acordo entre as partes com quitação ampla, geral e irrevogável do contrato de trabalho é eficaz para pôr fim ao excessivo número de processos trabalhistas?

Antes de responder à questão, é fundamental entender por que existem tantas reclamações propostas na Justiça do Trabalho.

Há quem diga que o “cidadão brasileiro gosta de litigar, pois há uma litigiosidade desenfreada, inequiparável (sic.) com qualquer país do mundo. Para se ter uma ideia, a Corte Suprema Americana tem 70 recursos para julgar e o Supremo Tribunal Federal tem 60 mil”. A referida frase foi proferida há cerca de dez anos pelo ministro Luiz Fux, em entrevista ao programa “Saiba Mais” sobre o Código de Processo Civil [3].

Mesmo que concordássemos com a afirmação do ministro Fux, o que não é o caso, no âmbito trabalhista a situação é bem diferente. O alto número de processos trabalhistas se deve ao descumprimento generalizado da legislação laboral e à “quase ausência” de fiscalização das empresas mau pagadoras.

Afinal, segundo o relatório Justiça em Números 2024, do próprio CNJ, o assunto mais demandado em primeiro e segundo grau, na esfera trabalhista, diz respeito à falta de pagamento de verbas rescisórias devidas ao fim do contrato de emprego; seguida do adicional de insalubridade e da multa de 40% do FGTS [4]. O assunto “verbas rescisórias” é o mais recorrente desde 2018 até agosto de 2024.

Ora, se o ex-empregado não recebeu corretamente o pagamento das verbas rescisórias, seria realmente o caso de aceitar um acordo para o seu pagamento? Tais verbas são devidas pelo empregador, salvo a prática comprovada de falta grave pelo empregado.

Dessa forma, se não receber o pagamento do aviso prévio e das verbas decorrentes da prestação de serviços, já que o trabalho é o meio de garantir a subsistência do empregado, como esse cidadão vai sobreviver?

Ademais, é importante ressaltar que ao contrário do que foi propagado, a reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017) não gerou os 6 milhões de empregos prometidos [5]. Ao contrário, reduziu direitos trabalhistas e dificultou a propositura de ações, com a condenação ao pagamento de honorários de sucumbência, na hipótese de o empregado não conseguir demonstrar a existência dos direitos pleiteados.

Mas não é só. Quais são as novidades da Resolução nº 586?

Os artigos 855-B a 855-E da CLT preveem a possibilidade de realização de acordo extrajudicial entre empregado e empregador que será levado à homologação da Justiça trabalhista, desde que as partes não sejam representadas por advogado comum. Neste caso, distribuída a petição de acordo, o Juiz analisará seu conteúdo e proferirá sentença homologando ou não o seu conteúdo.

O artigo 1º da Resolução n. 586, por sua vez, estabelece que os acordos extrajudiciais homologados pela Justiça do Trabalho terão efeito de quitação “ampla, geral e irrevogável”, nos termos da legislação (ou seja, conforme o que já preveem os artigos 855-B a 855-E da CLT), desde que observadas as seguintes condições:

“I – previsão expressa do efeito de quitação ampla, geral e irrevogável no acordo homologado;
II – assistência das partes por advogado(s) devidamente constituído(s) ou sindicato, vedada a constituição de advogado comum;
III – assistência pelos pais, curadores ou tutores legais, em se tratando de trabalhador(a) menor de 16 anos ou incapaz; e
IV – a inocorrência de quaisquer dos vícios de vontade ou defeitos dos negócios jurídicos de que cuidam os arts. 138 a 184 do Código Civil, que não poderão ser presumidos ante a mera hipossuficiência do trabalhador.”

Tais regras são as condições já previstas na CLT e necessárias para a validade de qualquer acordo. Portanto, até o momento, nenhuma novidade.

Em seu parágrafo único, complementa o artigo 1º que a quitação “ampla, geral e irrevogável” não abrange:

I – pretensões relacionadas a sequelas acidentárias ou doenças ocupacionais que sejam ignoradas ou que não estejam referidas especificamente no ajuste entre as partes ao tempo da celebração do negócio jurídico;
II – pretensões relacionadas a fatos e/ou direitos em relação aos quais os titulares não tinham condições de conhecimento ao tempo da celebração do negócio jurídico;
III – pretensões de partes não representadas ou substituídas no acordo; e
IV – títulos e valores expressos e especificadamente ressalvados.

Da mesma forma, tais exceções à quitação total do contrato de trabalho são incontestes, já que se a pretensão (seja ela uma sequela de acidente ou doença) ou qualquer outro pedido for insuscetível de conhecimento à época da realização do acordo; se se tratar de pessoas que não façam parte da negociação; ou, na hipótese de ressalva expressa de títulos ou valores pelas partes, não poderá ocorrer a quitação ampla da transação.

Relevante, entretanto, é o § 3º do artigo 3º da Resolução que estabelece ser “vedada a homologação apenas parcial de acordos celebrados”.

Pode a resolução limitar a atuação judicial? E mais, é válida a regulamentação do CNJ de uma questão de cunho eminentemente jurisdicional?

Como destaca Alexandre Garcia Muller [6], os efeitos liberatórios das transações (e a possibilidade de homologação parcial) integram a esfera postulatória e decisória do judiciário trabalhista, e a questão vem sendo amplamente debatida e amadurecida, inclusive no TST.

De fato, o juiz tem liberdade para apreciar e avaliar a questão e formar seu convencimento, indicando as razões de sua decisão. Por mais que os processos estejam sempre sujeitos à conciliação, o juiz do trabalho não é obrigado a homologar o acordo celebrado pelas partes, quando verificar a ocorrência de fraude ou vício de vontade.

Na hipótese de jurisdição voluntária, ou seja, quando não existe de fato uma lide, a situação é a mesma, uma vez que se a avença não atender aos requisitos legais ou na hipótese de vícios, compete ao julgador decidir pela homologação ou não, no todo ou em parte, do acordo extrajudicial, conforme o entendimento da Súmula 418 do TST.

Nesse sentido, tem se posicionado o TST para quem:

“por se tratar de procedimento de jurisdição voluntária, não cabe ao juiz adotar a postura que lhe é peculiar em um processo contencioso, na medida em que no procedimento de homologação de acordo extrajudicial não há litígio, tampouco partes adversas, mas apenas interessados na composição de um negócio jurídico.”

Acrescenta, porém que:

“não detectando fraude ou vício de vontade, observados os requisitos gerais de validade dos negócios jurídicos, bem como os específicos do art. 855-B da CLT, tem-se como caracterizado o negócio jurídico perfeito, não cabendo ao juiz do trabalho recusar a homologação ou fazer juízo de valor quanto ao alcance da quitação no acordo extrajudicial entabulado pelas partes.” [7]

Ocorre que, se o magistrado identificar a existência de vícios, tal como a simulação das partes; se constatar a renúncia a direitos trabalhistas indisponíveis, ou seja, constitucionalmente ou legalmente assegurados; ou ainda, quando verificar que as partes interessadas estejam ajustando uma transação que claramente descumpra a legislação tributária ou previdenciária aplicável (lesando direitos da Fazenda Pública ou da Previdência Social Nacional), não estará obrigado a homologar a transação das partes.

No entendimento do ministro Jose Roberto Freire Pimenta:

“O Juiz do Trabalho não está obrigado a homologar transações lesivas a direitos fundamentais ou claramente infringentes de normas de ordem pública, não podendo ser transformado em um mero “carimbador” desse ato de manifestação de vontade dos interessados ou em instrumento mecânico de aceitação automática de qualquer transação que lhe seja submetida.” [8]

Por fim, o incentivo à solução conciliatória e a quitação total do contrato de trabalho não deve se sobrepor ao princípio protetivo do Direito do Trabalho de assegurar o real equilíbrio entre as partes. A condição de hipossuficiência do trabalhador e a situação de vulnerabilidade diante do desemprego, quando justificarem a realização de um acordo, merecem análise judicial e a manutenção dos direitos, não competindo ao CNJ restringir liberdade do magistrado na direção do processo.

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[1] chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/10/resolucao-cnj-n-586-2024.pdf

[2] https://www.cnj.jus.br/justica-do-trabalho-podera-homologar-acordos-extrajudiciais-sem-ajuizamento-de-acao/

[3] https://www.youtube.com/watch?v=Rr8EQEoFilo (após 5’15’’)

[4] https://tst.jus.br/web/estatistica/jt/assuntos-mais-recorrentes

[5] https://g1.globo.com/economia/noticia/nova-lei-trabalhista-vai-gerar-mais-de-6-milhoes-de-empregos-diz-meirelles.ghtml

[6] Doutorando em Direito do Trabalho pela PUC-SP. Mestre em Teoria do Direito e do Estado

pela UNIVEM. Especialista em Direito Processual Civil pela UNIVEM. Juiz Titular da 1ª Vara

do Trabalho de Marília-SP

[7] TST – RR: 10000293220215020708, Relator: Amaury Rodrigues Pinto Junior, Data de Julgamento: 24/05/2023, 1ª Turma, Data de Publicação: 02/06/2023

[8] TST – RR: 10015420420185020720, Relator: Jose Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 12/04/2023, 3ª Turma, Data de Publicação: 20/04/2023

 

é advogada, professora da PUC na graduação e pós-graduação e sócia do escritório Abud e Marques Sociedade de Advogadas.

 

CONJUR

Litigiosidade e solução de disputas na Justiça do Trabalho (conjur.com.br)