Disney Rosseti
Casos recentes de assédio envolvendo autoridades, celebridades e corporações reacendem o debate sobre prevenção, enfrentamento e os impactos jurídicos dessa prática.

Recentemente o tema sobre o assédio voltou a pauta diante da ocorrência de casos rumorosos , seja envolvendo autoridades, seja envolvendo celebridades ou ainda grandes corporações privadas, reacendendo o necessário debate sobre a prevenção e enfrentamento a tal prática, de tudo nefasta e que apesar de avanços legislativos, campanhas de orientação de prevenção e punições, continua a ocorrer.

Um desses casos envolveu acusações graves de assédio moral e sexual contra o então Ministro de Estado dos Direitos Humanos e Cidadania, custando a sua demissão e de outros integrantes do Ministério1, com acusações partindo inclusive da  Ministra de Estado da Igualdade Racial, além de servidores do próprio Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. O custo político para o governo federal, independentemente do resultado das investigações, já está contabilizado e foi alto, com a ampla repercussão negativa dos fatos2.

Nos Estados Unidos o chamado caso "Weinstein" continua nos holofotes após um famoso ex-produtor de cinema ter sido acusado de assédio e de crimes de natureza sexual por várias atrizes famosas. Houve a condenação no ano de 2020 a 23 anos de prisão por crimes sexuais, condenação que foi anulada em abril de 2024, levando as vítimas a se mobilizarem para reverter esta situação3 e trazendo a lume novamente os rumorosos fatos ocorridos4.

Voltando ao Brasil uma grande montadora automotiva foi condenada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas/SP) por danos morais coletivos, devendo pagar 40 milhões de reais em razão de ter sido praticado assédio moral e discriminação contra seus trabalhadores, havendo no processo o relato detalhado das ações que constituíram o assédio, além de discriminação racial e discriminação em razão de deficiência5.

Esses casos são uma pequena amostra do problema do assédio sexual e moral, cujas vítimas têm de conviver com os traumas decorrentes desses atos, e as instituições públicas e corporações privadas tem de lidar com os prejuízos a imagem, ao ambiente de trabalho e demais consequências jurídicas cabíveis.

Basta uma pesquisa básica em sites de notícias sobre o tema do assédio moral e sexual que surgem inúmeras notícias a respeito, revelando que a quantidade de casos envolvendo denúncias de assédio é crescente. E independentemente do resultado final dessas investigações e da decisão da Justiça, a quem compete dizer após regular apuração, com exercício da ampla defesa e contraditório, se houve de fato conduta que se caracteriza como assédio, fato é que preocupa a quantidade de casos relatados, nos mais diversos ambientes e locais, seja no coração da estrutura do Estado como num Ministério, seja na glamorosa Hollywood vitimizando estrelas de cinema, ou ainda no âmbito de grandes corporações privadas tendo como vítimas seus empregados.

Em apertada síntese o assédio pode ser definido como toda conduta que cause constrangimento psicológico ou físico a pessoa (Nascimento, 2005), configurando uma conduta abusiva que atenta contra a dignidade da pessoa humana, tendo como vertentes o assédio sexual e o moral.

No assédio sexual temos uma conduta de natureza sexual não desejada, que embora repelida pelo destinatário, é continuamente reiterada, cerceando-lhe a liberdade sexual (Pamplona Filho, 2009). Embora exija, em regra, reiteração nas ações que configuram assédio, pode ser caracterizado excepcionalmente por ato único (CGU, 2024). O objetivo do assediador, aqui, é uma vantagem de natureza sexual, há a finalidade sexual, e não demanda necessariamente um contato físico, podendo ser cometido por expressões verbais, gestos, imagens, por escrito, dentre outras formas.

O Código Penal Brasileiro criminalizou a conduta do assédio sexual em art.216 - A, com prescrição de pena de 1 a 2 anos de detenção,  sendo que a doutrina reconhece duas espécies de cometimento desta conduta. A primeira é o assédio sexual por chantagem, no qual há uma exigência do superior hierárquico ou quem exerça poder sobre a vítima, de que preste "favores sexuais" sob pena de ser retaliada, no caso de relação trabalhista, até mesmo perder uma promoção ou o próprio emprego. Já a segunda é o assédio sexual ambiental, caracterizada por importunações, solicitações ou outras manifestações correlatas de natureza sexual, manifestadas verbais ou fisicamente, com intento de intimidação, abuso, ofensa no ambiente em que ocorre (Pamplona Filho, 2009).

Já no assédio moral há uma repetição de comportamentos de atos que, unidos, expõem a vítima a situações humilhantes, vexatórias, constrangedoras, que desestabilizam a vítima afetando sua auto-estima, sua psique, gerando fragilidade e mesmo depressão. Atos reiterados que desestimulam, desacreditam, isolam a vítima, como a prática de indiferença, desprezo, silêncio, tratamento desrespeitoso ou humilhante, imposição de isolamento, restrição da atuação profissional, dentre outros, são práticas de assédio moral (Peduzzi, 2007).

O assédio moral encontra no ambiente de trabalho, nas relações trabalhista, campo fértil para ser praticado, até mesmo pelas relações de subordinação naturais as relações de trabalho, motivo pelo qual a doutrina e jurisprudência disponíveis sobre o tema comumente são vinculadas ao Direito do Trabalho, inclusive nas reparações por dano moral coletivo em ações movidas pelo Ministério Público do Trabalho. Da mesma forma nas relações decorrentes do exercício de cargos públicos, na Administração Direta.

Recente levantamento do Tribunal Superior do Trabalho revelou que entre os anos de 2020 a 2023 a Justiça do Trabalho julgou, em todas as suas instâncias, 419.342 ações envolvendo assédio moral e assédio sexual, o que demonstra crescimento de 44,8% no período em termos de volume de processos sobre assédio moral, e 5% de aumento nos processos de assédio sexual6.

Em razão da importância do tema várias iniciativas vêm sendo adotadas pelo Governo Federal, a exemplo do Guia Lilás da Controladoria-Geral da União, que "traz conceitos e exemplos de atos, gestos, atitudes e falas que podem ser entendidos como atos de assédio moral ou sexual ou, ainda, de discriminação no contexto das relações de trabalho", fornecendo orientações para prevenção e tratamento ao assédio moral e sexual e à discriminação no âmbito do Governo Federal7.

Não faltam cartilhas e manuais visando esclarecer as pessoas acerca do tema, entre os quais podemos citar a Cartilha do Ministério Público Federal8, do Senado Federal9, do Conselho Nacional de Justiça10, do próprio Governo Federal11. Da mesma forma existem iniciativas e programas visando a prevenção e enfrentamento ao assédio em órgão públicos, Tribunais e etc.

Recentemente houve um importante passo para haver uma sistematização em relação ao enfrentamento deste tema, buscando uma estratégia conjunta entre entes federativos. Trata-se da publicação no último dia 30 de julho do Dec. nº 12.122/2024, que instituiu o Programa Federal de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio e da Discriminação, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

Este programa tem por finalidade enfrentar todas as formas de violência nas relações de trabalho, em especial o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação, com destaque para grupos historicamente vulnerabilizados, como mulheres, indígenas, pessoas negras, idosas, com deficiência e LGBTQIA+(art. 4º). Traz também estratégias que perpassam os campos da educação, gestão humanizada, avaliação permanente, proteção às pessoas denunciantes, procedimentos administrativos disciplinares e mecanismos de acolhimento, escuta ativa, orientação e acompanhamento12(art.2º).

Tendo abrigo no Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, este programa exige planos setoriais em todos os órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional (art.6º), prevendo ainda um Comitê Gestor para promover, apoiar e acompanhar a implantação do programa (art.8º) e Comitês Estaduais para acompanhar a execução do programa nos Estados (arts.9º e 10).

Quanto as estatais, deverão definir, em ato próprio, as ações necessárias à prevenção e ao enfrentamento do assédio e da discriminação, e os instrumentos adequados para acompanhar e controlar as açoes previstas (art.15).

Cabe destacar também que a Lei n.º 14.457/2022, que criou o Programa Emprega + Mulheres, trouxe no seu art. 23 a previsão de implementação obrigatória por empresas com Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e Assédio (CIPA) de várias medidas para prevenir e combater o assédio sexual, como capacitação e treinamento obrigatórios a cada 12 meses, regras de conduta expressas a serem difundidas quanto a assédio, procedimentos para recebimento de denúncias de assédio sexual e inclusão desses temas nas atividades e práticas da CIPA.

Finalmente vale apontar o Dec. n.º 9.571/20, que establecia as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos, no qual eram sugeridas voluntariamente para médias e grandes empresas, inclusive multinacionais, sendo sugerido  para as microempresas e empresas de pequeno porte observância na medida de suas capacidades, implementação das diretrizes de respeito a Direitos Humanos. Este decreto foi revogado pelo Decreto n.11.772/23, que instituiu Grupo de Trabalho Interministerial para  a elaboração de proposta da Política Nacional de Direitos Humanos e Empresas, a ser editada em novo decreto que aprimorará ainda mais a proteção aos direitos humanos em relação a atividade empresarial, visando a efetividade dessa proteção.

Insta ressaltar que o assédio, seja moral ou sexual, atenta contra a dignidade da pessoa humana e também contra os direitos sociais dos trabalhadores, previstos na Constituição de 1988 respectivamente em seus art. 1º, inc.III, e art. 7º e seus incisos. Vale dizer, o assédio, em qualquer uma de suas formas atenta em última análise contra os direitos humanos, vez que estes são inerentes a dignidade humana, são direitos inerentes a condição humana (Alvarenga, (2014), e atentam da mesma forma contra os direitos do trabalhador, direitos sociais de natureza fundamental e que demandam proteção em sua plenitude, proporcionando ao indivíduo as condições minimamente dignas de trabalho.

Para além desse arcabouço legal que vai se formando e consolidando cada vez mais a respeito do tema objeto desta reflexão, o que impõe aos gestores públicos e ao empresariado obrigações cada vez mais claras e diretas na prevenção e enfrentamento do assédio moral e sexual, a questão deve ser vista como um problema de todos, de toda a sociedade, a ser encarado com a seriedade que o tema merece. As vítimas de assédio sofrem consequências sérias decorrentes desta conduta, não somente no campo do trabalho e emprego, mas no campo psicológico, afetando por muitas vezes de forma grave a saúde física e mental da pessoa, e ainda com a perda ou desistência de se manter num emprego ou numa determinada empresa, restando estigmas ou carregando sequelas por muito tempo.

É essencial que a governança e os programas de conformidade das corporações privadas não somente cumpram as diretrizes e legislação sobre o tema, mas que tenham o compromisso moral e ético em implementar políticas e programas de prevenção, detecção e enfrentamento ao assédio moral e sexual, visando criar em seu meio uma cultura de respeito no ambiente de trabalho, permeada pela gestão humanizada e relações humanas sadias e baseadas no diálogo, respeito e confiança.

Uma política expressa e clara a respeito da intolerância ao assédio, a existência de canais de denúncia, proteção a identidade do denunciante, capacitação para os gestores em gestão humanizada, capacitação e treinamento para todos os empregados a respeito da temática do assédio, uma gestão que não seja tão rígida na hierarquização e punição exemplar para aqueles que transgredirem com as políticas da empresa sobre assédio são os elementos mínimos que se espera das corporações privadas que pretendam tratar a questão do assédio sexual e moral com a seriedade que o tema merece.

Somente com o engajamento das esferas pública e privada e com o suporte da sociedade é possível reverter este quadro que revela um número tão elevado de casos de assédio, colocando as relações interpessoais, especialmente aquelas permeadas pela hierarquia e no meio das relações trabalhistas, num patamar de respeito e apreço a dignidade da pessoa humana.  


Disney Rosseti
Atualmente é delegado de Polícia Federal do Departamento de Polícia Federal. Tem experiência na área de Direito.

MIGALHAS

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