Opinião

 

Em São Paulo, mortes de entregadores de plataformas têm recorde. Pagamento exíguo e estímulo a trabalhar sempre mais levam jovens a perder a vida.

Daniel Santini

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro[…]

Carlos Drummond de Andrade

Em 1945, o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade escreveu sobre a morte de um entregador. Tratava-se de um leiteiro, que foi confundido com um assaltante e baleado ao tentar deixar garrafas de madrugada. O poema Morte do leiteiro, parte do livro A rosa do povo (de Andrade, 2012), é inquietante pela banalidade com que o trabalhador é assassinado.

Quase oitenta anos depois, entregadores continuam morrendo de maneira cotidiana no Brasil. O discurso perverso que abre espaço para execuções sumárias extrajudiciais permanece, mas agora não é mais necessário ser confundido com criminosos para morrer. Em vez de balas, é o trânsito que mata em ocorrências constantes, potencializadas pela velocidade. A quantidade de fatalidades disparou, impulsionada, nas metrópoles, pelo aumento de mortes de motoqueiros. Na cidade de São Paulo, não há na história registro de tantas mortes de motoqueiros entre 1 de janeiro a 31 de julho, conforme os dados do Infosiga, sistema de registros do Departamento de Trânsito de São Paulo, que reúne dados desde 2015.

mortes no trânsito
na cidade de São Paulo
entre 1 de janeiro a 31 de julho

 

total

Motociclistas

2015

682

200

2016

540

162

2017

518

169

2018

463

177

2019

456

138

2020

403

157

2021

425

169

2022

502

204

2023

475

184

2024

612

246

Fonte: https://www.infosiga.sp.gov.br/

Tal tendência está diretamente ligada à expansão do capitalismo de plataforma e à multiplicação de aplicativos de entrega, bem como à maneira como eles funcionam. Mecanismos como a gamificação, em que, como em um videogame, jovens ganham pontos e vantagens por metas e feitos extraordinários, estimulam comportamentos de risco, descaso com regras de trânsito e desrespeito aos limites de velocidade.

A diferença é que, nos jogos em que se pilota uma motocicleta e não um joystick, os prêmios e recompensas são reais e monetarizados – ou seja, acelerar pode fazer toda a diferença para quem precisa ganhar para sustentar uma família ou sobreviver. E sobreviver talvez nem seja a melhor palavra, porque os riscos, claro, também são reais. Não existem outras vidas para gastar jogando ou a possibilidade de recomeçar a partida. A morte de entregadores disparou nos últimos anos e isso tem relação direta com o avanço de plataformas. Alerta sobre o fenômeno foi publicado no relatório da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) do município de São Paulo sobre sinistros de trânsito ocorridos em 2018: “Os acidentes fatais envolvendo motociclistas apresentaram alta em 9 dos 12 meses de 2018 […] demonstrando uma tendência consistente e alarmante. […] Estas constatações levaram à intensificação das ações de educação e fiscalização para motociclistas […], bem como à atuação sobre aplicativos de entrega com motocicletas que operam na cidade à margem da legislação municipal e federal sobre motofrete. A ação específica sobre motofretistas foi resultado do levantamento das declarações de óbito que indicou um aumento de 9% para 14% na participação de entregadores e motofretistas entre as mortes de motociclistas no trânsito em 2018”.

Nos anos seguintes, os motofretistas, que é como são nomeados os motoboys nas estatísticas, seguiram como a categoria que mais morre ano a ano na cidade. Em 2018 ainda, os 50 que morreram fazendo entregas representavam 5,8% do total de 849 mortes no trânsito da cidade ao longo de todo o ano. Seja pela atuação da CET ou não, o número diminuiu em 2019, em consonância com uma redução geral de mortes no trânsito: foram 35 motofretistas de 791 pessoas mortas no trânsito de São Paulo naquele ano, ou seja, 4,4% do total. Em julho, o então prefeito Bruno Covas (PSDB) chegou a anunciar um termo, firmado com as empresas iFood e Loggi, para, em suas palavras: “que não haja mais bonificação por número de entregas, pois estimula o desrespeito às leis de trânsito”.

Em 2020, porém, no mesmo ritmo que o número de entregas crescia em meio à pandemia de Covid-19, com parte da população em isolamento, o número de mortes de entregadores voltou a subir. Foi o ano em que morreram 57 motofretistas, ou 7% dos 809 mortos no trânsito. Em 2021, morreram 77 de 823, já 9,35% do total. Em outras palavras, de cada dez pessoas mortas no trânsito na capital em 2021, praticamente uma estava trabalhando com entregas. De cinco em cinco dias, um motoboy morreu na cidade de São Paulo em 2021.

O prefeito Bruno Covas (PSDB) faleceu em 2021 e, desde então, os relatórios que vinham sendo publicados anualmente sem interrupção desde 2012, não são mais publicados. Uma das medidas tomadas pela nova administração do prefeito Ricardo Nunes (MDB) foi suspender a divulgação das análises técnicas que subsidiavam políticas públicas e intervenções. Em um cenário em que faixas exclusivas de motos foram abertas em toda a cidade, em um ritmo muito superior ao de expansão de faixas de ônibus e ciclovias, não é mais possível identificar facilmente quantos, dos 246 motoqueiros mortos no trânsito nos sete primeiros meses de 2024, estavam trabalhando com entregas. Nas novas motofaixas, que induzem o aumento do uso deste meio de transporte e funcionam como infraestrutura física para consolidação do modelo de entregas, pelo menos dez morreram em 2024, conforme levantamento de Georgia Briano, pesquisadora da Escola Politécnica da USP.

Quem ganha com as mortes?

Uma análise sobre o período inicial de expansão dos serviços de entrega ajuda a entender melhor como se fixaram as bases para um novo sistema de transportes que se espalha com velocidade no Brasil. De 2019 a 2021, o iFood, principal plataforma de pedidos do país, passou de 20 milhões para 66 milhões de pedidos entregues por mês, de acordo com dados (não auditáveis) divulgados pela própria empresa. Em setembro de 2024, já eram mais de 100 milhões, ainda de acordo com a empresa.

Na cidade de São Paulo, um dos principais mercados do iFood, virou rotina ver motoqueiros apressados arrancarem em alta velocidade e ignorarem semáforos, levando a mochila vermelha da marca nas costas. Também passou a ser comum, infelizmente, vê-los estatelados no chão após colisões e atropelamentos.

O crescimento acelerado na pandemia consolidou o iFood como a principal plataforma de entregas de alimentos no Brasil – motivando, inclusive, questionamentos no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) de concorrentes como Rappi sobre os contratos de exclusividade com restaurantes e um possível monopólio da empresa no setor. Originalmente uma startup brasileira, a plataforma iFood foi adquirida pela Movile, empresa controlada pela holandesa Prosus, uma subsidiária do grupo sul-africano Naspers, que é um conglomerado de mídia, tecnologia e internet. O negócio foi concluído em 2022, quando a Movile adquiriu 33,3% das ações, as últimas ainda sob controle da acionista Just Eat Holding Limited, baseada no Reino Unido. A compra foi, segundo noticiado na época, de 9,4 bilhões de reais ou 1,8 bilhão de dólares, o que tornou a iFood a startup mais valiosa do Brasil, com valor estimado em 5,4 bilhões de dólares.

Apesar do crescimento de receita, que foi de 991 milhões de dólares entre março de 2021 e março de 2022, a empresa anunciou prejuízo líquido de 206 milhões de dólares no período, aumentando a pressão por resultados e as promessas de “otimizar a operação”, conforme noticiado pela consultoria especializada em mercado financeiro Suno. Os planos são de expandir áreas de atuação e a dominação no setor, atuando com “sede de disrupção, tecnologia e IA”, conforme o site da empresa. Desde 2022, além de delivery, o grupo atua como uma fintech, oferecendo serviços financeiros e de crédito.

O sistema de entregas já funciona no limite, e não há muito espaço para acelerar ainda mais as entregas ou aumentar a cobrança por resultados sobre os entregadores. Em termos de ocorrências de trânsito, mesmo quando não são fatais, a situação é grave. A médica Júlia Maria D’Andréa Greve, do Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo – um dos maiores centros de atendimento do tipo na América Latina – estima que em torno de 70% dos atendimentos de sua unidade são relacionados a aplicativos de entrega. Ela alerta para a evolução rápida do número de ocorrências e aponta que, se em 2016 menos de 20% dos pacientes internados em todo o HC haviam se envolvido em ocorrências de trânsito com motos, em 2022, já eram 80%, sendo boa parte jovens entregadores.

As estimativas foram apresentadas em depoimento formal durante audiência pública da Comissão de Saúde da Câmara Municipal de São Paulo, em 15 de setembro de 2022, conforme registrado no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Aplicativos. Na sessão, a médica ressaltou a urgência de encarar a questão: “Com o advento dos aplicativos e com essa explosão de pessoas que, por falta de oportunidade de emprego, começam a trabalhar nos aplicativos, a gente regrediu. Em dez anos, de 2013 para cá, houve uma regressão e o número de acidentes voltou a crescer, o número de incapacidades e de mortes voltou a crescer”.

Disse ainda: “Então, temos o avanço da tecnologia com o uso dos aplicativos para entrega […] baseado na atividade econômica de pessoas que não estão preparadas, que não podem executar essa tarefa, que não têm seguro de vida, que nem têm seguro-saúde, que não têm nenhum suporte social e que, além de estarem expostas a acidentes, estão expostas a uma condição de trabalho muito ruim, como o estresse, o barulho, o próprio uso da mochila com diferentes tamanhos, diferentes pesos. Isso tem uma ação direta na saúde do trabalhador. Quer dizer, não é só a questão de segurança, mas obviamente que a segurança se impõe pela gravidade das lesões”.

Os dados sobre entregadores mortos e feridos no trânsito da cidade de São Paulo ajudam a fazer projeções nacionais. Não é tão simples levantar estatísticas de todo o país, já que uma das características do modelo das plataformas corporativas é justamente a informalidade, o que faz com que subnotificações de acidentes de trabalho sejam uma constante. Mesmo a partir de dados que podem estar subestimados, contudo, é possível constatar que a tendência de alta prevista no relatório da CET de 2018 se concretizou. Conforme tabulação do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, em dez anos, o número de registros de acidentes de trabalho envolvendo motofretistas no país subiu de 4.154 para 4.782, sendo 2022 justamente o ano com mais notificações.

A entrada de multinacionais com modelos de entrega e transporte fundamentados na precarização do trabalho e na falta de regulamentação mínima ajuda a entender a quantidade de ocorrências envolvendo jovens apressados para entregar hambúrgueres ou envelopes envolvidos em colisões ou atropelamentos na cidade. A banalização da morte de entregadores é a dimensão mais grave de um novo modo de organização do trabalho no transporte de pessoas e mercadorias. Mas está longe de ser a única questão preocupante no redesenho distópico da mobilidade de pessoas e objetos nas cidades brasileiras que se forma a partir do capitalismo de plataforma.

O modelo de operação da iFood é parte de um fenômeno também conhecido como uberização, assim nomeado em função da Uber, empresa mais famosa a operar no capitalismo de plataforma no mundo que, no Brasil, concentrou sua atuação no transporte de passageiros. Em comum, as duas empresas e demais que atuam gerenciando o trabalho de motoristas e entregadores operam com base na falta de regras e de cuidado em relação a direitos básicos dos trabalhadores – tudo embalado em um discurso de liberdade e empreendedorismo que mais confunde do que ajuda a entender o que está acontecendo.

Uma análise mais detalhada sobre o tema está disponível no capítulo publicado pelo autor no livro “Um horizonte de lutas para a autogestão: o trabalho organizado por plataforma digital” e também no livro Sem Catraca: da utopia à realidade da Tarifa Zero, também escrito pelo autor e publicado pela editora Autonomia Literária.

Caminhos possíveis: capitalismo de plataforma com regulação

Se o cenário em que vivemos cada vez mais se assemelha a uma distopia, será que dá para pensar também em utopias? A partir de alguns exemplos concretos, cabe uma reflexão sobre novos modelos possíveis de organização social e econômica. O primeiro passo talvez seja a regulação das plataformas digitais. Com base em pesquisa sobre o tema, Renan Bernardi Kalil, autor de outro texto da mesma série já mencionado, tem defendido a criação de uma nova categoria, considerando critérios como o da dependência para definir a relação de emprego. Também defende a necessidade de redefinir o conceito de empregador e de estabelecer novos tipos de contrato, ampliando os direitos assegurados.

Tudo a partir da premissa de que é possível “assegurar a flexibilidade que o capitalismo de plataforma demanda na contratação de trabalhadores e não admitir que esse novo modelo seja utilizado para rebaixar as condições de trabalho”, conforme defende o autor em seu livro A regulação do trabalho via plataformas digitais. Outra referência que vai na mesma direção é a do trabalho nos portos. Os portuários também são trabalhadores avulsos com rotinas variáveis, mas que contam com proteção. Há espaço para avançar.

Além de pensar a regulação, vale acompanhar as novas formas de organização que têm surgido em contraposição ao capitalismo de plataforma, impulsionadas pela sociedade civil e pelo poder público. Das primeiras, uma das referências mais interessantes no Brasil é a da experiência das Señoritas Courier, coletivo de entregas de bicicleta formado exclusivamente por mulheres e pessoas LGBTQIA+.

O grupo se articulou em 2017 em São Paulo a partir da luta por melhores condições de trabalho e, além do transporte de mercadorias, têm realizado atividades relacionadas, como formações e cursos, e participado ativamente do debate sobre novas formas de organização centradas nas trabalhadoras e trabalhadores, entre as quais o cooperativismo de plataforma e a economia solidária digital. Em maio de 2024 o grupo lançou uma nova plataforma desenvolvida em parceria com o Núcleo de Tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), anunciada como “uma plataforma cooperativista, de propriedade de trabalhadoras e trabalhadores, pensada, desenvolvida, debatida por muita gente de cá e de lá, do Brasil e de fora do país”.

Assim como no cooperativismo tradicional, o cooperativismo de plataforma está centrado na auto-organização dos trabalhadores, a partir de uma proposta de cooperação e solidariedade. A diferença está no uso de novas tecnologias e na criação de plataformas para potencializar o alcance e os resultados. Na mobilidade, dá para imaginar de sistemas de distribuição inovadores a maneiras de conectar passageiros e motoristas com mais facilidade, tudo intermediado por aplicativos que pertencem aos próprios trabalhadores, e não a multinacionais buscando maximizar resultados – ou “otimizar a operação” conforme o discurso da iFood já citado.

As premissas do cooperativismo de plataforma são muito parecidas com as da economia solidária defendidas por Paul Singer, entre outros, na qual o Brasil tem longa tradição. É por isso que, ao contextualizar o conceito de cooperativismo de plataforma a partir da realidade brasileira, é possível pensar em algo como uma economia solidária 2.0 ou em economia solidária digital. E aqui o papel das cooperativas e coletivos é chave para o desenho de novos modelos operacionais. Neste sentido, é preciso considerar a tecnologia como um conjunto de técnicas e processos, e não como algo relacionado a aparelhos digitais ou a algoritmos mágicos. Quebrar o fetiche pelos aplicativos e tentar desenvolver soluções reais a partir da análise de problemas e de realidades locais, é um bom caminho para se pensar a partir do local.

A aproximação de movimentos da economia solidária com organizações que lutam por tecnologias livres é especialmente promissora para o desenvolvimento de novas ferramentas e aplicativos. A ideia é de que o uso de softwares livres e de licenças abertas favorece o compartilhamento e a multiplicação de soluções, criando um ecossistema benéfico aos trabalhadores. Códigos abertos permitem adaptação conforme contextos e necessidades locais e os aplicativos podem ser considerados bens comuns digitais, disponíveis para outras organizações e movimentos, em uma lógica que distribui e amplia resultados, em vez de limitar e concentrar ganhos e avanços, como a dos monopólios.

O poder público tem papel-chave no processo, devendo criar condições para que tal economia digital baseada em solidariedade floresça. O uso de licenças livres deveria ser condição para financiamento público, partindo da premissa de que o que é produzido com recursos públicos deve ser público. No Brasil, são muitas as referências da história de resistência antipropriedade na construção de uma cultura livre, com políticas públicas baseadas em licenças abertas do tipo creative commons.

No fim das contas, reforçar a ideia de mobilidade como direito é a chave para desmontar a distopia aberta pela rápida expansão do capitalismo de plataforma na mobilidade no Brasil. Não basta restringir e regular as plataformas empresariais, é preciso também estimular soluções alicerçadas nas garantias de direitos de passageiros e passageiras, de trabalhadores e trabalhadoras e da população. Cooperação e solidariedade deveriam ser premissas para imaginar e criar soluções na mobilidade.

Daniel Santini tem se destacado como um dos principais pesquisadores sobre políticas públicas de Tarifa Zero no Brasil. É mestre e doutorando pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e atua como coordenador de projetos na Fundação Rosa Luxemburgo.

 

DM TEM DEBATE

https://www.dmtemdebate.com.br/sangue-e-lucros-no-capitalismo-de-plataformas/