A nação aguarda ansiosamente o julgamento do Tema 1.389 pelo Supremo Tribunal Federal. Ao suspender nacionalmente as ações que discutem a fraude no contrato de trabalhador autônomo ou de pessoa jurídica para a prestação de serviços, o ministro Gilmar Mendes justificou que “o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas”.

Mas será verdade que a Justiça Laboral tem driblado as conclusões da ADPF-324, ou a Suprema Corte tem utilizado uma espécie de hiperintegração do precedente [1] para ampliar seu alcance?

Primeiro, como identificar a ratio decidendi

Não há consenso doutrinário sobre a identificação da ratio decidendi ou obiter dictum de uma decisão. No common law, o desafio dos advogados e juízes consiste justamente em classificar os argumentos como fundantes (holding) ou secundários (dictum).

No verbete Precedentes, o professor Lenio Streck demonstra o dissenso doutrinário anglo-saxão: para Arthur Goodhart, a ratio seria determinada a partir da verificação dos fatos tratados como fundamentais ou materiais pelo juiz, cuja visão, porém, é contestada por Rupert Cross, para quem aquela fórmula despreza a relação com casos passados.

Para Eugene Wambaugh, a ratio constitui “uma regra identificável a partir do elemento da decisão sem o qual o caso em questão deveria ter sido decidido de outra maneira” [2].

Para Karl Llewellyn, jurista americano, existem pelo menos 64 técnicas para identificação do holding; além do “teste de Wambaugh” (acima descrito), a ratio pode ser identificada negativamente (excluindo-se o que ela não é); ou pelo “teste de Oliphant” (estímulo-resposta); ou pela “fórmula Scalia” (generalizando aos poucos os fundamentos determinantes até se chegar ao nível mais específico, em que um direito constitucional assegurado pode ser identificado) e assim por diante [3].

Qual a ratio decidendi da ADPF-324? Caso concreto

Das 278 laudas que compõem o acórdão, é possível identificar os principais argumentos dos votos prevalentes, sem os quais a decisão seria outra.

Em debate: a (i)licitude da terceirização da atividade-fim.

No voto condutor, o ministro Luiz Fux destacou os seguintes fundamentos, dentre outros, para admitir a terceirização irrestrita:

(1) o valor social do trabalho dialoga com a livre iniciativa;
(2) a restrição da terceirização colide com a liberdade jurídica e restringir uma liberdade exige do Estado elevado ônus justificativo;
(3) a divisão entre atividade meio e atividade fim é imprecisa, artificial é incompatível com a economia moderna, onde há especialização e divisão das tarefas, visando maior eficiência das empresas, a exemplo do iPhone (Apple), cujo hardware é fabricado pela empresa (Foxconn), que utiliza processadores de uma terceira (Intel), numa coordenação de agentes especializados para o melhor resultado;
(4) a cisão das atividades entre pessoas jurídicas diferentes é uma questão estratégica e não fraudulenta, pois visa proteger a  empresa e manter o emprego dos trabalhadores;
(5) a terceirização não precariza, reifica ou prejudica os empregados, mas reduz desemprego, diminui o turnover, promove crescimento econômico e aumento de salários;
(6) há redução do desemprego, segundo pesquisa;
(7) a tomadora de serviços é responsável subsidiária em relação à prestadora pelos encargos trabalhistas da última, ou seja, a terceirização deve se compatibilizar “com as normas constitucionais de tutela do trabalhador, cabendo à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias.”

Após narrar a evolução dos modelos taylorista/fordista para o toyotismo, o ministro Barroso definiu a terceirização como transferência para outra empresa de parte da atividade produtiva, fenômeno inerente ao mundo globalizado, acrescendo fundamentos:

(1) “este não é um debate entre progressistas e reacionários, este é um debate e esta é uma discussão sobre qual é a forma mais progressista de se assegurarem empregos, direitos dos empregados e desenvolvimento econômico. Porque, se não houver desenvolvimento econômico ou sucesso empresarial das empresas, não haverá emprego, renda ou qualquer outro direito para os trabalhadores”;
(2) “deve-se atribuir à contratante a responsabilidade por fiscalizar os recolhimentos trabalhistas e previdenciários da empresa terceirizada”;
(3) “há, de fato, duas relações bilaterais: i) a primeira, de natureza civil, consubstanciada em um contrato de prestação de serviços, celebrado entre a contratante e a empresa terceirizada, denominada contratada;
4) a “segunda, de natureza trabalhista, caracterizada por uma relação de emprego, entre a contratada e o empregado. Assim, há, na última contratação, típica relação trabalhista bilateral, plenamente adequada à incidência do direito do trabalho”;
(5) “a atuação desvirtuada de algumas terceirizadas não deve ensejar o banimento do instituto da terceirização. Entretanto, a tentativa de utilizá-lo abusivamente, como mecanismo de burla de direitos assegurados aos trabalhadores, tem de ser coibida. Essa é a condição e o limite para que se possa efetivar qualquer contratação terceirizada. Os ganhos de eficiência proporcionados pela terceirização não podem decorrer do descumprimento de direitos ou da violação à dignidade do trabalhador. A contratante — sabedora da existência desse tipo de empresa — deve tomar todas as medidas necessárias a assegurar o respeito à integralidade dos direitos e dos deveres trabalhistas, previdenciários e de saúde e segurança no trabalho, que decorrem da relação de emprego entre a empresa terceirizada e seu empregado”.

O ministro Alexandre de Moraes fundamentou:

(1) “os casos ora tratados não têm por objeto a relativização de direitos sociais ou a desvalorização do trabalhador”;
(2) “em nenhum momento a opção da terceirização como modelo organizacional por determinada empresa permitirá, seja a empresa ‘tomadora’, seja a empresa ‘prestadora de serviços’, desrespeitar os direitos sociais, previdenciários ou a dignidade do trabalhador”;
(3) “da mesma maneira, caso a prática de ilícita intermediação de mão de obra, com afronta aos direitos sociais e previdenciários dos trabalhadores, se esconda formalmente em uma fraudulenta terceirização, por meio de contrato de prestação serviços, nada impedirá a efetiva fiscalização e responsabilização, pois o Direito não vive de rótulos, mas sim da análise da real natureza jurídica dos contratos”.

Os votos convergentes mantiveram os fundamentos essenciais e a ementa do acórdão preservou o vínculo empregatício, ao dispor: “Observância das regras trabalhistas por cada empresa em relação aos empregados que contratarem”. Na sequência, foi definida a seguinte “tese” — Tema 725/STF:

“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.”

Porém, a “tese” ganhou vida própria. Nos julgamentos posteriores, o Tema-725/STF passou a sofrer da chamada hiperintegração, irradiando seus tentáculos para outros casos, sem relação com a terceirização.

A “tese” passou a figurar como álibi argumentativo para validar toda sorte de “pejotizações” e outras formas de trabalho autônomo, desprezando as premissas (holding) que fundaram o julgamento.

Porém — e isso fica comprovado pela leitura do acórdão que gestou o Tema 725-STF, nenhuma linha do caso paradigma eliminou a relação de emprego; ao contrário, todos os votos dedicaram laudas para proteger os direitos sociais fundamentais.

Mas por que a terceirização irrestrita transformou-se em pejotização?

A pejotização não resiste à hermenêutica adequada. O professor Lenio Streck não se cansa de provar que, no Brasil, não existe um “sistema de precedentes”. Malograda será a tentativa de precedentalização do direito, por incompatibilidade e ausência de uma teoria de base.

Na forma como as teses se estabeleceram no Brasil — por meio de enunciados prêt-à-porter, esclarece o professor que “raramente a ementa citada vem acompanhada do contexto histórico temporal que cercou o processo originário. Não há a reconstrução da história institucional do ‘precedente’. Esse problema agravou-se com a aprovação do efeito vinculante das súmulas (embora o problema já existisse antes) e o surgimento daquilo que vem sendo denominado de ‘cultura de precedentes’. Ora, os fatos não cabem na ‘ementa’ ou no ‘precedente’, porque “a verdade não cabe no conceito”, de modo que a estrutura do raciocínio jurídico está baseada mais no argumento de autoridade do que na autoridade do argumento [4].

O professor André Coelho, no 7º Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito em 29/11/2024, sustentou que o “sistema de precedentes”, com sua verticalidade, soma o pior dos dois mundos: (1) cria uma norma (tese, súmula, texto) sem legitimidade democrática que se desprende do caso original (como se as cortes superiores julgassem “putativamente” todos os casos que tratem do mesmo tema; o juiz passa a ser a “boca” das Cortes de Vértice) e (2) busca promover um controle horizontal, pois quando um ou mais julgados fogem da lógica padronizada, recorre-se ao incidente de uniformização da jurisprudência (IUJ), o que leva à limitação da qualidade (e quantidade) dos argumentos racionais, conduzindo a uma simplificação do direito.

Há um fechamento hermenêutico forçado, porque é impossível desprezar as premissas fáticas do caso. Com Heidegger e sua hermenêutica da faticidade, não existe uma universalidade que contenha todos os sentidos, porque os sentidos se dão na concretude. A assertiva “não há lagartos em geral”, mas sempre um “dado tipo de lagarto” inspira-nos a pensar nas particularidades da espécie que caracterizam o ser, porque somente na concretude que se atribui o sentido (o é da coisa).

Portanto, não existem vínculos de emprego em geral, mas vínculos que se caracterizam na (e a partir da) faticidade, quando comprovados os pressupostos normativos.

Mesmo assim, o próprio STF é cambiante nas decisões sobre o tema relativo ao vínculo de emprego na “pejotização”: (1) ora compreende que há lagartos em geral, quando, forçosamente, adapta o caso ao precedente, desconsiderando as especificidades daquela relação jurídica; (2) ora compreende que as especificidades do lagarto lho afastam do precedente, porque as premissas do caso (subordinação) não se adaptam à permissão genérica da terceirização.

O positivismo fático tem essa característica: o tribunal põe o direito (diz que pode terceirizar); assim a doutrina descreve esse direito (tautologicamente: é possível terceirizar). Mas como o positivismo não se preocupa com a decisão judicial (o direito descrito não vincula), a (nova) decisão estará “livre” para pôr novo direito (pejotização). Consequentemente, entra-se num “looping” vicioso, que desautoriza a pretensão de segurança jurídica pretendida pelo “precedente”.

Por tudo isso, qual seria o telos dessa interpretação ilimitada promovida pelo STF? Erradicar o vínculo de emprego? Haverá espaço para a advocacia distinguir as particularidades do caso concreto em relação à terceirização, que nada tem a ver com pejotização? Ou o precedente é/será plenipotenciário e onipresente neste debate? Por que razão o Tema 725-STF foi distorcido — e transmutado — a ponto de se desprender dos fundamentos determinantes que lhe deram origem?

Reflexões finais

No livro Germinal, Emile Zolá mostrou o sofrimento dos trabalhadores nas minas de carvão, sem proteção à saúde e à segurança, o que provocou revolta dos operários, insurrectos com o sistema opressivo.

As assimetrias vêm de longe. E no Brasil, país de modernidade tardia, não foi diferente; a relação capital-trabalho é assimétrica na generalidade dos casos. Por isso, nossa Constituição compromissória garantiu direitos sociais mínimos (artigos 6º a 11), mas tudo isso pode ruir com a existência de um contrato formal entre pessoas jurídicas, ou, indo mais longe, até mesmo quando houver uma relação informal com alegada autonomia do trabalhador.

Da forma como as reclamações constitucionais estão sendo examinadas pelo STF, a pejotização irrestrita vai tornar “empresários”, do dia para noite, toda sorte de trabalhadores. Basta a existência de um contrato escrito para o caso “entrar na tese”. Ou pior: basta uma relação informal, alegadamente “autônoma”, para suspender a tramitação do processo (vide a Reclamação 79.504, pela qual o ministro Cristiano Zanin suspendeu a ação de um desafortunado servente de obras, que trabalhou menos de 03 meses, recebendo salário mensal de R$ 2 mil, sem CTPS anotada).

Imaginem o minerador descrito por Zolá reivindicando limites à jornada, uma folga semanal ou o salário mínimo. Se pejotizado, receberia um veredito prêt-à-porter: você decidiu ser empresário e não deve ser protegido. Pelo realismo jurídico e sua máxima (o direito é o que os tribunais dizem que é) afasta-se, com um simples piparote, as duras conquistas inscritas no artigo 7º da CF.

Liberdade e igualdade estão subjacentes às reflexões dessa natureza. Ao radicalizar a liberdade contratual em detrimento da igualdade, é preciso relembrar a frase de Isaiah Berlin: “a total liberdade do lobo é a morte dos cordeiros” [5].


[1] A “hiperintegração” do precedente significa a adoção da regra geral para casos que são distintos, enquanto a “desintegração”, noutro extremo, exagera na singularização do caso, de modo a negar-lhe aplicação a casos similares. (RAMIRES, Maurício – Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 104-105).

[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 351-352.

[3] RAMIRES, Maurício. Idem. p. 69.

[4] STRECK, Lenio Luiz – Ensino jurídico e(m) crise: ensaio contra a simplificação do direito. São Paulo: Editora Contracorrente, 2024, p. 90-95.

[5] Apud COUTINHO, João Pereira – As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 48.

 

CONJUR

 

https://www.conjur.com.br/2025-out-11/o-vinculo-de-emprego-pode-ser-erradicado-no-brasil/