O direito do trabalho, em sua gênese, foi moldado pela realidade da Revolução Industrial. Seu conceito basilar, a subordinação jurídica, foi cunhado para descrever a relação de sujeição do operário ao poder diretivo do empregador no espaço confinado da fábrica. Este modelo, a que podemos denominar subordinação clássica ou disciplinar, tornou-se obsoleto diante das novas tecnologias.
Desde a promulgação da Lei 12.551/2011, contudo, já possui uma modalidade adicional de vínculo de emprego. A nova redação do artigo 6º da CLT é a porta de entrada para essa nova modalidade, alinhada a matrizes teóricas fundamentais: a noção de alienidade, a partir de uma análise aprofundada de seus formuladores espanhóis; a teoria da sociedade de controle, de Gilles Deleuze e o conceito de poder empregatício algorítmico.
Não houve a supressão da subordinação como conceito doutrinário e jurisprudencial a partir da não tão nova redação do artigo 6º da CLT. Apenas foi agregado, pelo Parlamento, um critério adicional para a configuração do vínculo de emprego.
Gilles Deleuze, em seu “Post-scriptum sobre as Sociedades de Controle“, descreve a sociedade disciplinar como aquela que opera por meio de ambientes de confinamento (a fábrica, a escola, a prisão). O poder atua moldando o indivíduo através de horários rígidos e vigilância hierárquica. A subordinação jurídica clássica é um produto exemplar dessa lógica. O esgotamento deste modelo tornou-se evidente com o surgimento de formas de trabalho nas quais o controle não se dava mais pela clausura e pela ordem direta.
A alteração do artigo 6º da CLT em 2011 foi a resposta legislativa a essa crise. O caput equalizou o trabalho realizado no estabelecimento, no domicílio e a distância, mas foi seu parágrafo único que operou a verdadeira revolução conceitual:
“Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.”
Ao validar o controle tecnológico como sucedâneo do controle pessoal, a lei consolidou no direito positivo a tese da subordinação reticular. Esta nova modalidade de subordinação se caracteriza não pela sujeição a ordens diretas, mas pela integração do trabalhador na estrutura em rede, na dinâmica e na cultura organizacional da empresa.
Essa consolidação da subordinação reticular no Brasil encontra seu mais forte paralelo teórico na multifacetada doutrina da “ajenidad” do direito espanhol, construída por notáveis juristas ao longo do século 20.
A “ajenidad” (alienidade, na tradução de Pontes de Miranda) é uma construção teórica complexa, cujas diferentes facetas foram lapidadas por grandes laboralistas espanhóis.
A escolha do vocábulo “controle” pelo legislador brasileiro é a senha para compreender a profundidade da mudança. Deleuze contrapõe a disciplina (que molda) ao controle (que modula). Na sociedade de controle, o poder é digital, contínuo e funciona como uma modulação em rede.
O “controle” telemático do artigo 6º da CLT é a própria encarnação da sociedade de controle no mundo do trabalho. O algoritmo não dá ordens diretas, mas gerencia, avalia e modula o comportamento do trabalhador de forma contínua, por meio de sistemas de reputação, preços dinâmicos e design de incentivos. A lei, ao equiparar esse controle informático ao comando pessoal, captou o zeitgeist que Deleuze profetizou no inicio dos anos 90.
A jornada do conceito de subordinação é a crônica de sua adaptação a uma sociedade em transformação. A alteração do artigo 6º da CLT em 2011 foi o reconhecimento jurídico de que o poder mudou de um modelo disciplinar para um paradigma de controle. Nesta nova realidade, a subordinação é mais bem compreendida como subordinação reticular, cuja essência é a alienidade.
A rica doutrina espanhola, com as contribuições de Bayón Chacón sobre os riscos, Alonso Olea sobre os frutos e, crucialmente, Alarcón Caracuel sobre o mercado, oferece o arcabouço teórico mais robusto para essa análise comparada.
No caso de aplicativos e plataformas de trabalho, especialmente a doutrina da alienidade de mercado, aplica-se a essas hipóteses, pois o trabalhador é obstado de acesso ao mercado reticular e não tem acesso à clientela que pertence à empresa e atua na forma de marketplace ou até de, paradoxalmente, de mercado cativo na chamada economia de livre mercado.
A interpretação do direito do trabalho contemporâneo, orientado a dados, exige, portanto, um olhar interdisciplinar, em que a filosofia de Deleuze e a dogmática do poder algorítmico em rede passam a ser ferramentas fundamentais para nomear e tutelar as novas formas de sujeição na sociedade de controle reticular. O Parlamento já cumpriu seu papel, com a edição da da Lei 12.551/2011. Agora é a oportunidade de o STF conectar-se a esse cenário do big data produtivo.
José Eduardo de Resende Chaves Júnior
é desembargador aposentado do TRT-MG, doutor em Direitos Fundamentais, professor convidado do PPGD (mestrado e doutorado) da UFMG e diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (Ipeatra) e do Instituto Ideia (Direito e Inteligência Artificial).
CONJUR